Destinada a ajudar artistas afetados pela pandemia do novo coronavírus, a verba prevista pela Lei Aldir Blanc (Lei Federal 14.017/20) da Prefeitura de Manaus concentrou, em 2020, R$ 4,17 milhões nas mãos de 33 profissionais e instituições “de elite”. As informações constam no Diário Oficial do Município (DOM) do dia 25 de novembro de 2020.
Artistas ligados a políticos, também, foram beneficiados no ano passado pela Lei Aldir Blanc: filha do ex-governador Amazonino Mendes, Lívia Mendes recebeu R$ 60 mil da verba pública para produzir dois livros.
A legislação foi regulamentada pelo Decreto Municipal 4.923/20 e previa R$ 20,08 milhões em recursos a serem distribuídos a artistas de Manaus, sendo R$ 14.086.000 de origem federal. Pelos dados do Diário Oficial, 509 projetos foram contemplados com artistas beneficiados em até quatro categorias.
Os critérios para a liberação do recurso estavam previstos em 11 editais: dez para o programa “Conexões Culturais”, voltado ao fomento de projetos artísticos e culturais, e um edital de credenciamento de auxílio a espaços comprometidos pela pandemia.
Mais de 1 mil artistas e instituições se inscreveram para ter acesso ao recurso. O valor definido por categoria variava de R$ 5 mil até R$ 150 mil. Pessoas físicas e jurídicas poderiam participar em mais de uma categoria.
Vinculado à Prefeitura de Manaus, o Conselho Municipal de Cultura (Concultura), sob a presidência do escritor Márcio Souza, foi o responsável pela Comissão de Seleção dos projetos.
A verba da Lei Aldir Blanc é proveniente do superávit do Fundo Nacional de Cultura e foi repassado ao Fundo Municipal de Cultura, que é gerido pelo Concultura.
A iniciativa teve como objetivo contemplar projetos de artes visuais, audiovisual, circo, cultura hip hop, cultura infância, dança, literatura, manifestações culturais, música e teatro.
‘Casarão de Ideias’
A Associação Casarão de Ideias ficou no topo do ranking de contemplados que mais receberam dinheiro da Prefeitura de Manaus, via Lei Aldir Blanc, um total de R$ 430 mil, segundo o Diário Oficial do Município.
O valor estava distribuído em R$ 70 mil para o projeto “Lugares que o dia não me deixa ver”, na categoria Artes Visuais; R$ 50 mil para o projeto “Cine Casarão – E viva o Cinema de Rua!”, na categoria Audiovisual; R$ 100 mil para o projeto “XI Mova-se Festival Solos Duos e Trios”, na categoria Danças.
O Casarão de Ideias obteve ainda R$ 60 mil para o projeto “O grafito é arte?”, na categoria Hip Hop; R$ 100 mil para o projeto “Pedalando por uma Manaus que se constrói”, categoria Manifestações Culturais; e R$ 50 mil para o projeto “Revista Ideias Editadas”, categoria Literatura.
No site do Casarão de Ideias, www.casaraodeideias.com.br não havia, até essa sexta-feira, 12, informações sobre as despesas empenhadas nos projetos beneficiados pela Lei Aldir Blanc, contrariando a Lei Federal 12.527/2011 (Lei da Transparência Pública).
Dentro da legislação, o artigo 3º. prevê que instituições, associações e outras entidades que recebem dinheiro público devem utilizar os meios de comunicação para a prestação de contas à sociedade.
Presidente do Casarão de Ideias, João Fernandes foi um dos membros da classe artísticas em Manaus que considerou “imoral” a nomeação de ex-vereadores para trabalharem na Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult).
As nomeações dos ex-parlamentares Reizo Castelo Branco e Elias Emanuel com cargos de diretores na Manauscult foram amplamente noticiadas pela REVISTA CENARIUM e outros sites de notícias de Manaus, sendo posteriormente revogadas.
Lives por R$ 150 mil
No segundo lugar da relação de contemplados que mais arrecadaram com a Lei Aldir Blanc em Manaus está Anália Nogueira Barros Cerqueira, que conseguiu R$ 150 mil para o projeto “Neon do Norte – Coletâneas de Videoclipes”, na categoria Audiovisual.
Em pesquisas na internet, a reportagem encontrou o perfil “Neon do Norte” no Instagram, aparentemente, com criação recente e 362 seguidores. Lá, constam imagens de cards divulgando informações sobre quatro (04) lives, bancadas com recursos da Prefeitura de Manaus e Ministério da Cultura.
No perfil pessoal de Anália Nogueira no Facebook, ela explica que a “série” de lives foi financiada com dinheiro público. “Projeto contemplado no Edital Prêmio Manaus de Conexões Culturais 2020, da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult), por meio da Lei Aldir Blanc”.
Com os R$ 150 mil da Prefeitura de Manaus, Anália fez lives com oito pessoas para falar sobre quatro temas envolvendo atividades de artes audiovisuais como “Direção de Arte e Figurino”, “Direção de Roteiro”, “Direção de Fotografia” e “Som Direto”.
Ela, também, foi uma das artistas que protestou, em suas redes sociais, contra a nomeação de ex-vereadores para cargos na Manauscult com hastegues #DavidAlmeidaRespeitaACultura.
Apostas nas lives
Outra artista que obteve mais de R$ 100 mil para fazer lives foi a cantora Márcia Novo. No perfil pessoal do Facebook, diferentemente de Anália Nogueira, Novo não comenta a aplicação da verba pública.
A cantora recebeu um total de R$ 130 mil da Prefeitura de Manaus pela Lei Aldir Blanc, sendo R$ 100 mil para o projeto “Festival Tarumã alive a bordo”, na categoria Música. A live foi gerada em perfil próprio do Instagram, chamado “Festival Tarumã Alive”, com 1.391 seguidores.
Márcia Novo conseguiu ainda R$ 30 mil pela “Aldir Blanc” para produzir o projeto “Videoclipe – Eletroboi”, na categoria “Música”. As informações sobre o projeto não foram encontradas nas redes sociais ou em sites oficiais.
Ex-secretária contemplada
Ex-secretária da Manauscult e filha do ex-governador Amazonino Mendes, a jornalista e cantora Lívia Mendes foi uma das contempladas pela Prefeitura de Manaus, no ano passado, via Lei Aldir Blanc.
Lívia obteve um total de R$ 60 mil, sendo R$ 50 mil para o projeto “Livro Infantil Ilustrado Cadu e a Bactéria Verde”, na categoria Literatura e, na mesma categoria, ela recebeu R$ 10 mil para o projeto “Triologia do Artista – Peças de Lívia Prado – Um processo de colaboração e estímulo à leitura.”
Sob investigação do MP
A REVISTA CENARIUM tentou ouvir as pessoas citadas na matéria. A jornalista Lívia Mendes informou que produziu e lançou os livros contemplados na Lei Aldir Blanc, mas, segundo ela, os decretos que restringiram o comércio atrasaram a distribuição.
Já o presidente do Casarão de Ideias, João Fernandes, limitou-se a pedir para a reportagem falar com a Prefeitura de Manaus. Não explicou a falta de transparência no site da associação para o recebimento dos mais de R$ 400 mil de verba pública da prefeitura.
Procurado para comentar o assunto, o Ministério Público do Amazonas (MP-AM) informou que já possui denúncias contra a distribuição da verba municipal da Lei Aldir Blanc em 2020, estimada em R$ 6 milhões. Já o recurso de R$ 14 milhões oriundo do Ministério da Cultura ficará sob a fiscalização do Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF).
O ex-presidente do Conselho Municipal de Cultura, Márcio Souza, não respondeu as chamadas telefônicas da reportagem.
Os não contemplados
Com a proibição de aglomerações em função da pandemia do novo coronavírus, mais de 500 artistas de Manaus – não contemplados pela Lei Aldir Blanc – precisam contar com a ajuda externa para garantir a subsistência.
Este ano, a Manauscult e o Conselho Municipal de Cultura iniciaram os trabalhos de atendimento aos profissionais da arte, que estão acometidos pela Covid-19 por meio de uma Comissão Especial.
A comissão colocou à disposição dos trabalhadores da cultura assistência psicológica, fisioterapia e, ainda, a entrega de cestas básicas nas casas dos artistas, com apoio da iniciativa privada.