A série especial da Amazônia Real Ouro do Sangue Yanomami, publicada em parceria com a Repórter Brasil, pode ter puxado o fio de um criminoso novelo que envolve a negociação de vacinas em áreas de garimpo. É o que denunciou o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kuana (Condisi-YY), em ofício de 15 de julho, a Robson Santos Silva, titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ao procurador da República Alisson Marugal e ao superintendente da Polícia Federal de Roraima, Marcos Ronki.
O presidente do Condisi YY, Júnior Hekurari Yanomami, diante da série Ouro do Sangue Yanomami, decidiu visitar as comunidades Komamassipi, no Parafuri, e também as aldeias das regiões do Parima e Homoxi. Segundo Júnior, durante as visitas que fez, descobriu que 106 vacinas contra a Covid-19 que deveriam imunizar os indígenas foram desviadas para garimpeiros pelos profissionais de saúde.
“Na Comunidade Komamassipi, Região do Parafuri, nem todos os indígenas foram vacinados, e que as vacinas foram utilizadas nos garimpeiros, um total de 45 pessoas, e que foi pago para equipe de profissionais em torno de 15g por vacina”, oficiou Júnior Hekurari Yanomami, na nota do Condisi-YY, para as autoridades. Em Parima e Homoxi, o relato ouvido pelo conselho é que 61 garimpeiros foram vacinados no lugar dos indígenas.
Este é o segundo caso de denúncia de troca de vacinas por ouro. A primeira foi enviada ao Ministério Público Federal pela Hutukara Associação Yanomami nas regiões de Humuxi e Uxiu, em abril. A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas também denunciou o caso para a CPI da Covid, em Brasília.
A agente da Sesai
O ofício do Condisi-YY cita o nome de Thatiana Almeida e outros quatro profissionais da Sesai, que foram vistos vacinando garimpeiros na região do Parafuri e Parima. E cita ainda que os Yanomami constataram que esses agentes “retornaram para cidade [Boa Vista] no dia 13/05 em um voo pago pelos garimpeiros”.
A reportagem ‘Compro tudo’: ouro Yanomami é vendido livremente na Rua do Ouro (Leia a íntegra aqui), presente na série Ouro do Sangue Yanomami, apontou que em abril de 2021 a fisioterapeuta Thatiana Nascimento Almeida entrou na loja Opalo, na capital roraimense, perguntando se o local comprava “ouro do garimpo”. Ao receber a informação positiva, ela voltou para o carro, apanhou um pacote no porta-luvas e entrou novamente na loja.
A agente, que vestia máscara da Sesai quando foi flagrada pela reportagem, foi procurada antes da publicação da série, mas não retornou as ligações. Depois que Ouro do Sangue Yanomami foi publicada, em 24 de junho, ela entrou com um processo judicial contra a Repórter Brasil, parceira na produção da série.
Por ordem do juiz Air Marin Junior, do 2º Juizado Cível de Boa Vista (RR), a reportagem publicada na Repórter Brasil foi censurada e trechos dela tiveram de sair do ar. O veículo parceiro da Amazônia Real, em nota, considerou que “a retirada, feita sem decisão transitada em julgado e sem nenhuma audiência para ouvir a Repórter Brasil, é censura, pois fere a liberdade de imprensa”.
Procurado nesta quarta-feira (29), o MPF confirmou que recebeu nos últimos meses denúncias de troca de vacinas por ouro em terras indígenas. E informou que a investigação está em curso e o órgão só se manifestará sobre o caso quando da conclusão da apuração ou eventual apresentação de denúncia.
Durante quatro meses, equipes da Amazônia Real e da Repórter Brasil investigaram como funciona a exploração ilegal do ouro na TI Yanomami. A série revelou de forma inédita como estão envolvidos no esquema criminoso empresas mineradoras com grande capital financeiro, donos de aeronaves, servidores públicos, políticos e governantes, indígenas, grifes de joalherias internacionais e até o narcotráfico.
Meio milhão de reais desviados
O portal G1 estimou que as 106 doses que foram destinadas aos Yanomami, mas desviadas para os garimpeiros, representam uma movimentação equivalente a cerca de 500 mil reais, com a cotação do ouro a 319,82 reais a grama. Ao veículo noticioso, Junior Hekurari informou que os desvios das vacinas teriam ocorrido nos meses de março, abril e maio, o mesmo período em que foi feita a apuração da série Ouro do Sangue Yanomami.
As comunidades Yanomami estão localizadas em áreas de difícil acesso da floresta amazônica, em Roraima, no extremo Norte do país. De avião, o voo leva 1h30 de Boa Vista. A comunicação com os indígenas, mesmo para o Condisi-YY, tem de ser feita por radiofonia.
No ofício, o conselho denuncia ainda que “a equipe [de servidores da saúde] não permite os indígenas falarem no rádio, e quando os mesmos retrucam sobre a vacinação em garimpeiros, é falado que a Sesai autorizou a vacinação”. É por essa razão que o presidente do Condisi YY, Junior Hekurari Yanomami, solicita que as equipes de saúde presentes nas comunidades indígenas sejam desligadas imediatamente.
“O cenário é grave e demanda uma atuação coordenada e integral dos órgãos responsáveis pela política de saúde”, diz a nota do Condisi, acrescentando a gravidade da denúncia. “É inadmissível que, em meio à insistente piora nos índices de saúde das comunidades Indígenas da Terra Yanomami, e em plena pandemia da COVID-19, o órgão responsável pelo atendimento da saúde indígena tenha seus recursos desviados para atendimento de não indígenas que atuam em garimpo ilegal.”
Em nota, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), informou, nesta quinta-feira (29), que o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami está apurando a denúncia do Condisi Yanomami, mas que “até o momento, ainda não foram apresentadas ou encontradas provas das acusações. Ratifica-se ainda que o distrito não pactua com nenhuma ação ilícita em reserva indígena e está pronto para colaborar com as autoridades competentes”.
Governo entupiu de cloroquina
Desde o início da pandemia, a incidência de Covid-19 entre os Yanomami tem sido alta, considerando se tratar de uma população com pouco acesso aos centros urbanos. Lideranças indígenas acreditam que o contato com garimpeiro aumentou a prevalência da doença entre os Yanomami.
Até nesta quinta-feira (28), a Sesai registrou 1.957 casos da doença, com 18 óbitos entre os Yanomami. Organizações indígenas dizem que estes dados têm subnotificação. A primeira morte de um indígena registrado pela Sesai foi justamente de um jovem Yanomami, em abril de 2020. As mortes entre os Yanomami pela Covid-19 provocaram não apenas comoção pelo luto, mas pela dificuldade que muitos deles encontraram para seguir os ritos funerários tradicionais.
A Terra Indígena Yanomami também foi alvo de uma política de atenção ao combate à Covid-19 equivocada e desastrosa por parte do governo Bolsonaro, que enviou milhares de comprimidos de cloroquina para a região, desde o início da pandemia.
O líder Dário Kopenawa disse à Amazônia Real que os comprimidos de cloroquina entregues nas comunidades Wakaris e Surucucu, da Terra Indígena Yanomami, foram devolvidos para a Sesai. “Mandamos recolher as cloroquinas. Tiramos esse comprimido que seria usado para Covid-19 em nosso povo. Mandamos recolher para devolver para o Dsei Yanomami e depois mandar para onde precisa para o tratamento de malária”, afirmou Dário.
Ataques diários de garimpeiros
Desde o início de maio, os Yanomami estão sob sucessivos ataques diários de garimpeiros, muitos deles ligados à facção criminosa PCC. Os indígenas têm sofrido assédios, agressões verbais e físicas e ameaças. Várias aldeias estão sendo alvo de ataques a bomba e tiros. Sob intensa pressão, eles também encontram dificuldade de se deslocar dentro de seu próprio território para caçar e pescar.
No final de junho, as forças de Segurança do governo federal e órgãos ambientais anunciaram o início da operação Omama e a Polícia Federal anunciou que iniciaria a retirada dos garimpeiros, mas os indígenas dizem que são eles próprios que estão se defendendo.
A violência dos garimpeiros tem alcançado outras áreas a TI Yanomami até então pacífica, como é o caso das comunidades da região do Parafuri. Em declaração exclusiva dada à Amazônia Real, uma liderança disse que os garimpeiros montaram uma estrutura ilegal para extrair ouro da TI e as ameaças dos invasores contra os indígenas e invasores já começam a aparecer. “Eles tentaram afogar um Yanomami e andam pela aldeia dizendo que vão matar a gente”, completou a liderança.
Matéria extraída da Amazônia Real