Nádia Pontes – DW Brasil
Em 2012 era criada a lei que deveria ser a principal de proteção de florestas no Brasil. Mas menos de 0,5% dos imóveis rurais estão regularizados. Descaso governamental é convite ao desmatamento, dizem especialistas.
Em sua primeira década de existência, o reformulado Código Florestal brasileiro parece distante do principal objetivo nomeado à época de sua aprovação: regularizar a situação ambiental das propriedades rurais no país.
Sancionada em 25 de maio de 2012, a legislação que mudou as regras de proteção da vegetação em áreas particulares tem sido implementada a passos lentos. Dos mais de 6,5 milhões de imóveis rurais que cumpriram a obrigação de informar a localização e detalhes da mata nativa dentro da propriedade, cerca de 29 mil estão devidamente regularizados – o que equivale a apenas 0,4% do total.
A informação é do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), que coordena a implementação da política prevista pela lei no país. Anteriormente sob a administração do Ministério do Meio Ambiente, o SFB passou para o comando do Ministério da Agricultura no governo de Jair Bolsonaro.
É o órgão que gerencia o sistema de informações sobre a ocupação rural no país, criado após a aprovação do novo Código Florestal. O ponto de partida é o registro eletrônico obrigatório feito pelos imóveis chamado de Cadastro Ambiental Rural (CAR). A dificuldade é que o cadastro é autodeclaratório, e por isso todos os detalhes precisam ser conferidos pelos órgãos estaduais de meio ambiente.
“São mais de 6 milhões de cadastros que precisam de uma validação. Já se passaram dez anos, a implementação do código está sendo muito lenta”, analisa Roberta Giudice, secretária executiva do Observatório do Código Florestal (OCF), em entrevista à DW Brasil.
Criado em 2013, um ano depois da polêmica aprovação da lei, o observatório reuniu inicialmente sete organizações que trabalhavam para ajudar a controlar o desmatamento e que atuaram na discussão no Congresso. Atualmente, ele conta com 39.
Sem motivo para comemorar
Aprovada após mais de uma década sendo revisada por parlamentares, a nova legislação, que teve como base o texto do então deputado Aldo Rebelo, perdoou crimes ambientais cometidos até 22 de julho de 2008. À época, a estimativa era de que o valor total das multas que seriam perdoadas ultrapassaria a casa dos 8 bilhões de reais.
Até hoje, essa decisão repercute negativamente no país, avalia Suely Araújo, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e especialista em Políticas Públicas do Observatório do Clima.
Por esse e outros motivos, não há o que ser festejado. “O CAR foi o instrumento mais importante da lei florestal de 2012, mas os números absurdamente baixos de imóveis com análise concluída retiram qualquer possibilidade de comemoração dos dez anos da legislação”, afirma.
É só após a validação dos dados pelos órgãos competentes, que conferem se as informações fornecidas são verdadeiras, que as propriedades podem aderir ao programa de regularização ambiental caso estejam fora da lei.
Na Amazônia, por exemplo, o Código Florestal determina que as fazendas precisam conservar 80% da vegetação. Essa proteção, a chamada Reserva Legal, é menor nos outros biomas: 35% no Cerrado e 20% nas demais regiões do país.
“A validação precisa ser acelerada. É um trabalho hercúleo, mas que pode priorizar a análise de acordo com ganho ambiental, com verificação de dados dos imóveis localizados em grandes áreas degradadas”, opina Giudice.
Diferenças entre estados e falta de transparência
Questionado sobre a demora para implementação da lei, o Ministério da Agricultura respondeu por e-mail que é trabalho dos estados analisarem o CAR. “Cabe ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB), como órgão coordenador da política nacionalmente, dar suporte e buscar meios para dar celeridade a este processo”, diz a nota.
Os números mostram, por outro lado, que esse suporte tem faltado. Segundo o boletim mais recente do SFB, nove estados não chegaram a concluir sequer uma análise dos cadastros feitos: Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima e Rio Grande do Sul.
Mesmo na lista dos mais avançados, a validação é tímida – Mato Grosso (3,3%), Rondônia (2,9%) e São Paulo (1,9%).
“De forma geral, os [estados] que mais avançaram foram os que seguiram com cadastro próprio, enquanto os estados que se apoiam somente nos sistemas fornecidos pelo Ministério da Agricultura tendem a seguir de forma mais lenta”, comenta Raoni Rajão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre o estudo relativo ao tema que liderou em parceria com o OCF.
Por outro lado, os dados fornecidos pelos órgãos estaduais têm falta de transparência, alerta um levantamento feito por OCF, Instituto Centro de Vida, Imaflora, ARTIGO 19 e Instituto Socioambiental.
Dos 278 pedidos de informação enviados às secretarias de meio ambiente entre 2019 e 2021 com a finalidade de acompanhar a implementação da lei, 28% não foram respondidos ou retornados com atraso. O campeão das negativas é o Acre: nenhuma solicitação foi atendida durante a pesquisa.
A destruição ambiental na década
Enquanto o país tentava implementar a nova lei na última década, cerca de 32 mil quilômetros quadrados de florestas foram destruídos de 2012 até 2020. Esse total surpreendeu até a autora do cálculo.
“É muita coisa. Isso foi o que perdemos de todos os tipos de vegetação natural no Brasil”, comenta Roberta Giudice. “E assim o país se afasta cada vez mais do protagonismo nesta nova economia verde que está surgindo no mundo”, lamenta.
A falta de obediência ao Código Florestal tem forte conexão com a alta do desmatamento, principalmente na Amazônia, avalia Giudice. “São dez anos de descaso, de descumprimento da lei ambiental, o que dá um sinal muito negativo para quem está em campo de que a lei não precisa ser cumprida”, argumenta.
Em abril, o último mês da estação chuvosa na Amazônia, os alertas de desmatamento estimaram uma área de 1.026 km² destruída, segundo o sistema Deter-B, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É uma nova marca histórica para o período e equivale à quase o dobro do recorde anterior durante o governo Bolsonaro, registrado no ano passado (580 km²). Foi a primeira vez que um dos primeiros quatro meses do ano registrou desmatamento que ultrapassa a casa de mil quilômetros quadrados.